quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Cantinho do Poeta















Lembre-vos quão sem Mudança


Lembre-vos quão sem mudança,
Senhora, é meu querer,
perdida toda esperança;
e de mim vossa lembrança
nunca se pode perder.
Lembre-vos quão sem por quê
desconhecido me vejo;
e, com tudo, minha fé
sempre com vossa mercê,
com mais crecido desejo.

Lembre-vos que se passaram
muitos tempos, muitos dias,
todos meus bens se acabaram,
com tudo, nunca mudaram;
querer-vos, minhas porfias.
Lembre-vos quanta rezão
tive pera esquecer-vos,
e sempre meu coração,
quanto menos galardão,
tanto mais firme em querer-vos.

Lembre-vos que, sem mudar
o querer desta vontade,
me haveis sempre de lembrar,
té de todo me acabar,
vós e vossa saudade.
Lembre-vos como pagais
o tempo que me deveis,
olhai quão mal me tratais:
Sam o que vos quero mais,
o que menos vós quereis.

Lembre-vos tempo passado,
não porque de lembrar seja,
mas vereis quão magoado
devo de ser c’o cuidado
do que minha alma deseja.
Lembre-vos minha firmeza,
de vós tão desconhecida,
lembre-vos vossa crueza,
junta com minha tristeza,
que nunca foi merecida.

Lembre-vos que se quiséreis,
assi como consentistes
nestes meus males, fizéreis
com o menos que pudéreis
não serem meus dias tristes.
Lembre-vos quão mal tratado
lembranças vossas me trazem;
eu sempre menos mudado,
quando mais desesperado
vossas mostranças me fazem.

Lembre-vos a quão má vida
tenho, por bem vos querer;
esta dor faz mais crecida
não vos ver arrependida
de mo assi desconhecer.
Lembre-vos, minha senhora,
que, por já me verdes vosso,
mostrais que vos desnamora
procurar ver-vos cada hora,
o que eu escusar não posso.

Lembre-vos que nem por isso
minha fé vereis mudada,
o que está craro e bem visto,
pois cousas mores naquisto
tiveram forças de nada.
Lembre-vos que outra mercê
de mim nunca foi pedida,
senão só que minha fé,
pois tinha causa por quê,
fosse de vós conhecida.

Nestes dias dezimados,
lembre-vos com quanta pena
hão-de viver meus cuidados,
sendo já desesperados,
vendo que nada os condena.
Lembre-vos que vida tal
nunca vo-la mereci;
olhai bem em quanto mal
me pagais o ser leal
c’o tempo que vos servi.

Bernardim Ribeiro, em 'Antologia Poética'

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